Um instrumento demasiado poderoso para os privados. A privatização da RTP (VI) - Frederico Pinheiro

17-09-2012 01:50

Enquanto o Governo dá como encerrada a discussão em torno da venda da RTP, os trabalhadores saem à rua em protesto e os debates sucedem-se. Publico aqui uma série de textos, de modo a tentar dar o meu contributo para o debate. As referências bibliográficas encontram-se no último texto.

Este é o sexto texto.

 

Os restantes encontram-se aqui: O capital privado é mais livre do que o público?O contrato de serviço público de televisãoo cumprimento do contrato de serviço público de televisãoo que deve ser o contrato de serviço públicogarantir ou não o serviço público de televisãosugestões para a melhoria da sustentabilidade financeira

VI

 

Como referimos no início desta análise, a venda da RTP foi decidida em 2011 pelo actual Governo. Ao contrário do debate em torno do serviço público de televisão, o tema da privatização da RTP tem sido extensivamente abordado na literatura. Consideramos, devido à sua actualidade e importância, essencial abordar esta temática na nossa análise.

 

A ideia da privatização do serviço público de televisão pode ser enquadrada no pensamento económico clássico e na Teoria da Escolha Pública, segundo a qual a substituição do Estado por operadores privados na economia traria uma maior eficiência aos diferentes sectores (Backhouse, 2002). Como refere Rebelo (2011), a contestação da manutenção na esfera pública do sistema de televisão acompanha o questionamento do próprio conceito de Estado-Nação. Esta ideia é partilhada por diversos autores, tais como José Madureira Pinto, que escrevia num artigo no jornal Público, de 9 de Julho de 2002, citado por Fidalgo (2003): “Talvez não seja por acaso que a discussão em torno do serviço público de televisão se revelou, inesperadamente, tão empolgante. Nesta discussão – muitos cidadãos o terão pressentido já -, não é só, nem principalmente, a qualidade da programação televisiva que está em causa. Em última análise – percebe-se cada vez mais - é também o futuro do Estado-Providência, isto é, a possibilidade de os valores centrados no bem comum se sobreporem aos valores centrados no interesse dos mais fortes, que está verdadeiramente em jogo”. Vemos assim que a questão da privatização da RTP engloba-se num quadro de saída abrupta do Estado dos principais sectores da Economia, voltando progressivamente à sua função original de defesa da propriedade privada (Wolf, 2004).

 

A ideia de privatizar a RTP foi introduzida no debate político em 1998, quando o PSD avançou com essa ideia no dia 22 de Abril, aquando de um debate parlamentar. Quatro anos mais tarde, quando os sociais-democratas ganharam as eleições, a ideia foi recuperada pelo Governo liderado por Durão Barroso. A ideia caiu nessa altura, tendo sido recuperada agora, dez anos depois, por um novo Governo do PSD/CDS-PP. Contudo, também os governos do PS admitiram concretizar essa proposta em diversas ocasiões.

 

De acordo com o instrumento financeiro utilizado pelo Estado para prosseguir a sua política de serviço público de televisão, o Estado, através de transferências do Orçamento do Estado, e os contribuintes, através da contribuição do audiovisual, tiveram uma despesa de 927 milhões de euros com serviço público de televisão e radiodifusão, entre 2008 e 2011, dos quais 486,2 milhões de euros foram canalizados para os dois canais de televisão em sinal aberto (Acordo Complementar, 2008). Ao primeiro montante devemos ainda somar 678,2 milhões de euros em dotações de capital, durante o mesmo período (DGTF, 2012). No total, em quatro anos, o esforço financeiro dos contribuintes chega aos 1,6 mil milhões de euros, cerca de um milhão de euros por dia. No actual cenário de restrição financeira, este número não pode deixar de ser considerado elevado e é muitas vezes o argumento principal utilizado pelos defensores da privatização. O passivo total da RTP situava-se nos 932,8 milhões de euros, no final de 2010 (RTP, 2011). Avançamos com algumas sugestões para melhorar a sustentabilidade financeira da RTP na parte final da nossa análise.

 

Citando dados da European Broadcasting Union relativos a 2011, o Conselho de Opinião da RTP constata “que os custos operacionais, no ano em referência, são os mais baixos entre os operadores analisados, situando-se 59,40% abaixo da média europeia” (Conselho de Opinião, 2011).

 

A literatura divide-se quanto à necessidade da presença do Estado no sector da comunicação social, mais especificamente na televisão. Autores como Torres (2011) e Fernandes (2011) mencionam a necessidade do Estado reduzir as suas despesas e questões relacionadas com a liberdade de imprensa para defenderem que o Estado não deve estar presente no setor da comunicação social.

 

O argumento da liberdade é recorrentemente utilizado para justificar a privatização do serviço público de televisão. Wolton refere-se ironicamente a estas posições: «l‟argent privé apparaissant comme une plus grande garantie de liberté que l‟argent public» (1990, p.26). De facto, num sector inundado por empresas privadas, consideramos que a existência de um operador público é ou pode ser o garante de uma maior pluralidade e diversidade no sector da comunicação social. Popper, citado por Teodosi e Albani (2000), explica que a televisão é um meio demasiado poderoso para não ser controlado pelo Estado. Tal como referimos em cima, Wolton, define a televisão como o maior instrumento existente ao serviço da democracia. Seria, no mínimo, arriscado colocar este setor inteiramente nas mãos do setor privado: «Le mal d‟hier, la television privée, est devenu le bien d‟aujoud‟hui, et réciproquement: on vilipende maintenant la télevision publique, indentifiée au contrôle politique et synonyme d‟archaisme», (1990, p. 12).

 

No nosso entendimento, as necessidades dos cidadãos no que toca à televisão devem estar no mesmo plano da garantia de serviços públicos como a educação, a segurança social, a saúde, a segurança (Fidalgo, 2003). 

 

Frederico Pinheiro, membro da direcção da ATTAC Portugal

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