Os mercados financeiros comandam, PS e PSD obedecem, Cavaco prega o conformismo, a Comissão Europeia de Barroso arrasta os pés. E nós por cá?

14-06-2010 14:00

 

 

 

 

O puxão de orelhas a Barroso e as fragilidades europeias face aos mercados

A imprensa deu notícia que Merkel e Sarkozy deram um puxão de orelhas ao Presidente da Comissão Europeia, o conhecido orgulho nacional do bloco central cá da terra. Durão Barroso estará a andar demasiado devagar com o estudo para a aplicação de medidas de regulação e controlo dos mercados financeiros no espaço europeu. Com necessidade de se justificarem nos seus próprios países (pudera, andamos na “crise” há 2 anos…), afirmavam na sua carta ao Presidente da Comissão que, “dado que a comunidade internacional se comprometeu em unanimidade a não deixar qualquer mercado, qualquer produto, qualquer interveniente ou região fora da regulação ou supervisão, o regresso de forte volatilidade aos mercados torna necessário questionar certos métodos financeiros e certos produtos, tais como a venda de títulos a descoberto e ‘credit-default swaps’ “ (os CDS).

Apresentados como uma espécie de seguros contra o incumprimento da dívida (obrigações) os CDS tornaram-se de facto o seu contrário, produtos financeiros altamente tóxicos e não sujeitos a regulação, cujo valor sobe quanto maior for o risco de incumprimento da dívida, ou seja, quanto mais fizerem baixar o valor das obrigações. A venda a descoberto (o naked short-selling) é outro processo “criativo” de especulação financeira, que aposta na queda do valor dos títulos, através da venda a descoberto de títulos de empresas das quais os intermediários financeiros não possuem sequer as acções. Ambos são instrumentos da especulação financeira que contribuem fortemente para a instabilidade dos mercados financeiros e para a crise que vivemos, tal como os hedge funds (fundos de investimento de alto risco, pouco ou nada regulados, que apostam nas flutuações bolsistas utilizando processos de alavancagem financeira, ou seja, arriscando muito além dos capitais efectivos que os suportam) e uma panóplia de outros produtos ditos derivados, numa espiral delirante duma economia de casino em que o capital financeiro incontrolado submerge a economia real, os empregos, os sectores produtivos.

Ora, segundo um documento da Comissão Europeia citado pelo Jornal de Negócios (com origem na agência Bloomberg), a legislação em preparação para regulação dos mercados financeiros na UE apenas deverá ser aplicada nos países europeus no final de 2012! Sim, está a ler bem. Em 2012!!!  E. pelo lado do G20, com cimeira marcada para os finais de Junho em Toronto, os sinais dados na sua recente reunião preparatória com os ministros das Finanças, com uma declaração vaga e que não responde à exigência internacional crescente da taxação das transacções financeiras, também não são animadores.

Até lá, então, vai-se navegando à vista, empurrão daqui e dacolá. A UE e os governos vão tomando medidas avulsas em nome do rigor e da austeridade, para “acalmar os mercados”, assim classificados como sujeitos sem rosto, mas todo-poderosos, de humor variável. É assim que a UE aprova tardiamente e à pressão um plano de apoio financeiro ao elo mais fraco – a Grécia -, depois a seguir um fundo europeu de 750 000 milhões de euros para apoiar os países em dificuldades, e logo adiante o BCE começa a adquirir títulos de dívida pública no mercado secundário (ou seja, aos mesmos bancos que continua a financiar a taxas de 1%, e a quem paga pelos títulos taxas mais elevadas, um grande negócio para estes!).

Mas logo, e de cada vez, os “mercados” e as agências de notação financeira vêm proclamar que não chega, querem mais, toca a baixar os “ratings” da dívida pública e a aumentar de novo o preço dos créditos, o FMI e a OCDE juntam-se à música e prossegue uma espiral reactiva de medidas que, em vez de porem ordem e submeterem o capital financeiro e os especuladores que originaram a crise, os vão de facto engordando à custa de novos sacrifícios exigidos aos mesmos de sempre - os que vivem do seu trabalho – e de cortes no investimento público e nos direitos sociais.

Nós por cá…

É este também o espectáculo que vemos por cá, com um Governo PS, num bloco central ressuscitado com o PSD, a despejar sucessivos pacotes de sacrifícios em cima dos cidadãos, porque é preciso provar aos “mercados” que somos bons alunos, mesmo à custa de mais desemprego, do risco de recessão económica, e de darem permanentemente o triste espectáculo do dito por não dito, do rasgar de compromissos e do deitar para o cesto do lixo o diálogo social, a negociação colectiva e a concertação social, convertidos em mera retórica piedosa e cínica.

Com a ajuda de um discurso do Presidente da República no Dia de Portugal que, sem esperança, prega a todos o conformismo e a resignação perante esta política, apresentada como necessária, e apenas com a solicitação piedosa de “equidade” nos sacrifícios, e cuja única discordância significativa relativamente a Sócrates, é a sua caracterização catastrofista da situação, considerando-a insustentável.

Ou seja, enquanto o comissário europeu da Economia e Finanças, Olli Rehn, ilustrando a superficialidade e o desconhecimento da realidade em que navega a burocracia de Bruxelas, depois de ter papagueado as receitas do costume relativamente a Portugal (mais reformas laborais e nas pensões, resumindo, mais porrada nos mesmos de sempre para “acalmar” os “mercados”), veio emendar parcialmente a mão, mas deixando o recado – a que o Ministro das Finanças pressurosamente respondeu no Finantial Times prometendo nova investida nas leis laborais - o que se vê de facto é uma União Europeia errática, dividida e incapaz de controlar e pôr em sentido o sistema financeiro e os especuladores que continuam insaciáveis no jogo perigoso e suicidário de afundar a seu belo prazer a dívida, o crédito e a economia de países (ou seja, de pessoas!). Com a ajuda de agências de notação financeira prestimosas que são ao mesmo tempo avaliadoras dos bancos, empresas e fundos de investimento e pagas por eles, sem qualquer controlo público e político.

Mas resta-nos o fraco consolo – pelo menos assim nos explicaram o PS, os partidos da direita, Sócrates e Cavaco Silva – de que o chefe desta burocracia europeia incompetente e que arrasta os pés, ao leme de um barco a meter água, ao serviço de uma liderança política medíocre, comprometida e sem rasgo, é um português, aliás fugitivo do Governo de Portugal para paragens mais confortáveis quando isto por cá aqueceu, e que isso seria motivo de prestígio e um grande benefício para Portugal. Ainda alguém vai nisso?

A armadilha da austeridade e do rigor e o futuro da União Europeia

A austeridade que nos estão todos os dias (e há tanto tempo!) a vender, apenas “conduz ao desastre”, como alerta o Nobel da Economia Stiglitz, em lúcida entrevista ao Le Monde (ver aqui). O “rigor” das soluções que todos os dias nos pregam, é uma “armadilha”, como lucidamente refere também Philippe Frémeaux no seu editorial da edição de Junho da Alternatives Économiques (ver aqui) e é sustentada numa orientação política da UE fragilizada e com pés de barro, que põe em risco o próprio futuro do euro como moeda única, se não for arrepiado caminho.

Arrepiar caminho significa pôr em causa um Pacto de Estabilidade e Crescimento na sua forma actual, que tem contribuído para a recessão e o fraco crescimento económico europeu (porque é que o défice orçamental dos Estados não pode exceder 3%? E porque não 4% ou 2% ? E porque é que os níveis de desigualdade ou coesão económica e social entre países não contam?). Significa alterar a missão do BCE, que não pode limitar-se a ser o guardião da manutenção da inflação abaixo dos 2% (e porquê 2% e não 3 ou 4%?), justificando com isso políticas e medidas de carácter recessivo, e não tendo entre as suas funções a promoção do desenvolvimento e do emprego, ou seja, as pessoas. Significa reforçar o orçamento e a coordenação económica e política da UE, mas uma coordenação assente na solidariedade e não uma invocada coordenação, como a actualmente prosseguida por Merkel & Cª, que é uma vigilância assimétrica ditada pelos “mercados”, em que os mais poderosos impõem o seu diktat aos mais frágeis.

Em conclusão: ou nos pomos em movimento, aqui e na Europa, e tomamos nas nossas mãos a exigência cidadã de uma alteração radical da lógica regressiva das políticas actuais, ou temos pela frente uma longa crise social e o forte risco de recessão económica, a regressão de direitos sociais e laborais em nome duma competitividade convertida em mito, o recuo do projecto de construção de uma União Europeia na base de soberanias partilhadas e garante de paz na região, o questionamento do futuro do euro e o sacrifício de trabalhadores, desempregados, reformados e da vida e futuro das novas gerações. Eis o grande desafio colocado às esquerdas e aos movimentos sociais e sindicatos europeus!

Em vez de Portugal e a UE andarem permanentemente a debitar medidas anti-sociais para apertar a vida e o cinto sempre dos mesmos, em nome do apaziguamento dos “ mercados”, porque não desarmar e submeter os mercados e o sistema financeiro às necessidades de desenvolvimento humano? Porque não tomar medidas para o seu controlo público e transparente, para que paguem os seus próprios erros e desvarios (mais taxação de lucros e mais-valias, taxação das transacções financeiras, liquidação dos criminosos paraísos fiscais), canalizando os recursos públicos para a defesa do Estado social, para melhores serviços públicos e para o desenvolvimento da economia real dos bens transaccionáveis?

Basta de oráculos da racionalidade de mercados "livres" 

É tempo de recusar que “os mercados” comandem as nossas vidas em vez de estarem ao nosso serviço, essa entidade mitificada e voraz que até parece não ter rosto, e nos entra pelas casas dentro através dos seus oráculos do pensamento único. Esses mesmos “especialistas” que sempre nos enganaram e se enganam e que sempre nos vendem novas certezas e novos sacrifícios do alto das suas confortáveis cátedras, em nome duma economia que proclamam falsamente como “ciência exacta”, para assim impingirem os seus remédios.  

Daniel Oliveira, no blogue Arrastão, num excelente e oportuno artigo (ver aqui todo o seu post), retrata bem tais oráculos: “aquilo a que temos assistido nos últimos meses é uma das mais avassaladoras operações de propaganda ideológica de que há memória na nossa democracia, onde nem a mais tímida das discordâncias merece qualquer respeito ou atenção. Onde todas as correntes de política económica que não alinham com o discurso da defesa da austeridade foram varridas do espaço público. Nos canais de televisão sucedem-se economistas-papagaios que se repetem uns aos outros numa ladainha insuportável que depois é repetida por políticos, jornalistas, comentadores, colunistas e simples cidadãos, como se não fosse matéria de controvérsia. Este país não se arrisca a sair desta crise apenas mais pobre. Tudo indica que, substituindo o debate político por aulas de economia dadas por contabilistas, sairá dela mais estúpido”.

Como bem relembra Amartya Sen, num seu recente artigo, The economist manifesto (ver aqui), tais “especialistas” adeptos do livre mercado e da sua racionalidade, enganam-se quando invocam Adam Smith como o fundamentalista dos mercados que não foi. E lembra que este, o autor duma Teoria dos Sentimentos Morais além da conhecida e sempre invocada Riqueza das Nações, sendo sem dúvida defensor do funcionamento eficiente duma economia de mercado, também defendia a necessidade de associar a ética à economia e definia a economia política como tendo dois objectivos: prover os recursos necessários à subsistência dos indivíduos e assegurar ao Estado e à comunidade os meios suficientes para garantir os serviços públicos.

Que longe estão os actuais propagandistas do pensamento único neoliberal do pensamento de Adam Smith e como é preciso recuperar as fontes e ultrapassar preconceitos para que também à esquerda seja possível inventar alternativas e sair da armadilha em que querem enclausurar resignadamente a maioria e tornar o trabalho e o emprego no bombo de festa da crise!

Que fazer

Que mais é preciso fazer para que cidadãos e forças políticas, organizações sociais e sindicatos que não se resignam nem conformam com este estado de coisas, ultrapassem barreiras e preconceitos paroquiais e se unam no esforço comum de não só resistir a esta nova cruzada neo-liberal, como também para impulsionar um amplo movimento social e político para a construção e apresentação de alternativas?

Quando é que a UGT une esforços com a CGTP para um compromisso negociado de acção comum, como o seu próprio e insuspeito fundador Torres Couto apelou no dia da manifestação nacional da CGTP, e abandona a sua passividade cúmplice com o bloco central PS/PSD a funcionar (nas medidas contra os desempregados, como na rejeição de todas as medidas de taxação reforçada do sistema financeiro ou no anúncio de novas facadas nas leis laborais), para que seja possível alargar a unidade na mobilização social e para que seja possível revalorizar a negociação colectiva e exigir uma concertação social tripartida a sério?

Para que a concertação social não seja a farsa em que está a ser convertida, que apenas serve para avalizar as decisões do Governo e os compromissos com o seu parceiro de facto, o PSD e de álibi para umas declarações de circunstância e fingimento da  Ministra do Trabalho Helena André, já esquecida do seu passado sindicalista?

Como se vão posicionar os candidatos presidenciais na sua caminhada até às eleições, relativamente às escolhas estratégicas que estão em jogo quanto ao futuro, que envolvem o Estado social que queremos e uma sociedade mais ou menos desigual, que mexem com a Constituição e não são apenas políticas e medidas imediatas do foro da governação de cuja crítica se possam alhear?

Como único candidato claramente assumido à esquerda e declarado defensor do diálogo e agregação de forças à esquerda, Manuel Alegre, para ser um candidato vencedor, tem perante si o difícil desafio de não alienar, mas ampliar, o exército de cidadãos, de esquerda ou não, que num grande movimento de cidadania o conduziram próximo da vitória nas últimas presidenciais.

No difícil equilíbrio entre gestão de apoios político-partidários e as suas convicções, valores, princípios e percurso, os cidadãos chamados a fazer as suas escolhas numa eleição de carácter unipessoal valorizarão certamente e sobretudo a coerência, a independência e a clareza das propostas, a sua garantia de defesa duma democracia política e social que não fique capturada por uma pequena minoria interesseira.

Para isso, esperamos que, na sua caminhada política até às eleições, tenha a sabedoria e a coerência de privilegiar sempre o seu capital de esquerda e o apoio da cidadania activa e plural que mobiliza, sem se deixar condicionar pelas lógicas partidárias e da governação nestes tempos de instabilidade e incerteza. É a amplitude e solidez do contrato de confiança que conseguir firmar com os cidadãos, sem intermediários, que determinará principalmente o seu resultado e o contributo da sua candidatura para a esquerda futura.

Enquanto vamos todos pensando e “trocando umas ideias sobre estes assuntos”, assinemos e divulguemos aqui ou aqui (sítios web da ATTAC Portugal) a petição apoiada pelas ATTAC da Europa, dirigida aos Governos do G20 que reúnem em cimeira nos próximos dias 26 e 27 de Junho, em Toronto, exigindo a taxação de todas as transacções financeiras, para condicionar a especulação e assegurar mais recursos mundiais para o desenvolvimento, contra a pobreza e para evitar que sejam os povos a pagar novas crises engendradas pelas aventuras gananciosas de bancos, fundos de investimento e especuladores.

Porque a nossa acção transformadora e o nosso combate por um mundo melhor também se faz de pequenos gestos que se somam na potência de uma multidão.

Henrique Sousa, da Direcção da ATTAC

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