O contrato de serviço público de televisão. A privatização da RTP (II) - Frederico Pinheiro

17-09-2012 01:27

Enquanto o Governo dá como encerrada a discussão em torno da venda da RTP, os trabalhadores saem à rua em protesto e os debates sucedem-se. Publico aqui uma série de textos, de modo a tentar dar o meu contributo para o debate. As referências bibliográficas encontram-se no último texto.

Este é o segundo texto.

 

Os restantes estão aqui: O capital privado é mais livre do que o público?o cumprimento do contrato de serviço público de televisãoo que deve ser o contrato de serviço públicogarantir ou não o serviço público de televisãoum instrumento demasiado poderoso para os privadossugestões para a melhoria da sustentabilidade financeira

 

II

 

O serviço público de televisão (SPT) foi concessionado à RTP em 2003, por um período de 16 anos. Em 2005 o Tribunal de Contas recomendou ao Estado e ao conselho de administração da empresa pública a assinatura de um contrato de concessão, o que veio a ocorrer em Março de 2008. “O Estado deve também estabelecer contratualmente um conjunto de metas e objectivos específicos quantificáveis que lhe permitam, de uma forma eficaz, aferir do cumprimento efectivo pela concessionária das obrigações de SPT” (Contrato de Concessão do Serviço Público de Televisão, 2008, p.2).

 

O Contrato de Concessão do Serviço Público de Televisão, assinado para vigorar entre 2008 e 2011, mas que permanece válido devido à não assinatura de um novo, é o principal instrumento através do qual o Estado cumpre a obrigação constitucional de “assegurar a existência e o funcionamento de um serviço público de televisão” (CSPT, 2008, p.1). Do mesmo constam as orientações da política pública a serem implementadas através da RTP. Existe ainda um instrumento financeiro através do qual o Estado fornece à empresa pública os meios financeiros tidos como necessários para prosseguir a sua missão, designado por Acordo Complementar. Este instrumento será objecto de uma análise mais profunda na parte final da nossa reflexão.

 

Apesar de aprofundarmos uma pouco mais adiante o debate em torno do serviço público de televisão, vemos como fundamental a necessidade de especificar o que entendemos por serviço público de televisão. Esta é, seguramente, uma definição extremamente subjectiva, que depende da tradição cultural, política e social de cada país. Adoptaremos por isso a definição dada por Pinto: “serviço público de televisão, na acepção técnica e restritiva do mesmo, tal corresponde, no caso português, ao operador a quem o Estado atribui a respectiva missão” (2011, p.255).

 

Esta definição obriga-nos à restrição da nossa análise: numa primeira fase ao serviço contratualizado e efectivamente prestado pelo operador, e numa segunda fase à estrutura administrativa e organizacional da empresa / veículo utilizada pelo Estado para cumprir a política pública definida para o sector.

Através do Contrato de Serviço Público de Televisão, o Estado estabelece obrigações gerais à concessionária e obrigações específicas, relacionadas com os diferentes serviços de programas – canais. De acordo com o Contrato de Concessão do Serviço Público de Televisão, o Estado define, junto da concessionária, que a “prestação do serviço público decorre na estrita observância dos princípios da universalidade e da coesão nacional, da diversificação, da qualidade e da indivisibilidade da programação, do pluralismo e do rigor, isenção e independência da informação, bem como do princípio da inovação” (CCSPT, 2008, p.8). Exige, portanto, à RTP uma programação diversificada, que respeite as minorias existentes na sociedade, dando voz a temáticas que podem ser negligenciadas pelos canais de televisão privados, por razões comerciais, financeiras ou ideológicas. Há também uma preocupação em fornecer aos públicos mais jovens uma programação de qualidade e que cumpra o objectivo de formar os cidadãos mais jovens, para além do objectivo lúdico.

 

É ainda estabelecido que o serviço público de televisão oferece às minorias com necessidades especiais, nomeadamente os cidadãos com deficiências auditivas, instrumentos para acompanharem as emissões regulares pagas com o dinheiro de todos os cidadãos. Esta preocupação, de abranger toda a população, está igualmente destacada nas exigências da programação que deve ser dirigida a todos os públicos, independentemente da sua classe social, interesses, religião ou ideologia. Dentro desta exigência, é ainda efectuada uma chamada de atenção para os horários em que devem ser transmitidos determinados programas, pois deve ser tido em conta os públicos que em determinado momento estão a ver televisão. Consta ainda deste Contrato de Serviço Público de Televisão a transmissão de obras cinematográficas e audiovisuais de produção nacional e de co-produção com outros países, com especial atenção para os países europeus e de expressão portuguesa.

 

De acordo com o mesmo documento, o primeiro canal de televisão deve dirigir-se ao grande público, através da transmissão de programas de informação, entretenimento, programas de carácter cultural e da sensibilização dos telespectadores para os seus direitos e deveres enquanto cidadãos. O segundo canal tem uma missão distinta. “O segundo serviço de programas generalista de âmbito nacional compreende uma programação de forte componente cultural e formativa, devendo valorizar a educação, a ciência, a investigação, as artes, a inovação, a acção social, a divulgação de causas humanitárias, o desporto amador e o desporto escolar, as confissões religiosas, a produção independente de obras criativas, o cinema português, o ambiente, a defesa do consumidor e o experimentalismo audiovisual”, (CCSPT, 2008, p.12). Deve ter, por isso, “uma programação de grande qualidade, coerente e distinta dos demais serviços de programas televisivos de serviço público” (p.13).

 

Apesar das obrigações serem essencialmente qualitativas, o Estado estabelece para ambos os canais obrigações temporais específicas para determinados programas. Assim, o primeiro canal está obrigado a garantir três espaços noticiosos diários; um espaço semanal para programas sobre instituições políticas, entrevistas, debates ou divulgação cultural; um espaço mensal para grandes reportagens, documentários e exibição de longas-metragens nacionais; e ainda um espaço bimestral para exibição de espectáculos culturais e artísticas ou dedicados à música portuguesa. O segundo canal deve garantir diariamente um espaço noticioso, programação infanto-juvenil e espaços de promoção da cidadania activa; quinzenalmente devem ser exibidos debates sobre temas sociais ou espectáculos de artes não comerciais; uma vez por mês deve ser exibida uma longa-metragem nacional; e semanalmente uma panóplia de programas como espaços religiosos, dedicados ao desporto amador, comunidades emigrantes e minorias étnicas, ao cinema, à literatura e à música.  

 

Frederico Pinheiro, membro da direcção da ATTAC Portugal

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