Dotação orçamental para a Defesa: de quem contra o quê? - por Mário Tomé

25-11-2013 13:12

Abordar o OE para a Defesa, o seja para as FA’s, do ponto de vista dos interesses dos cidadãos e cidadãs portugueses, que é o único ponto de vista que nos deve interessar, esbarra num paradoxo bizarro sustentado pelo absurdo em que as políticas dominantes se desenvolvem.

Paradoxo na natureza das próprias Forças Armadas, paradoxo no que à sua função diz respeito e paradoxo no enquadramento estratégico dessa mesma função.

A ver:

Nos dias de hoje e mormente quando os putativos garantes  da afirmação da soberania popular confessam quase com entusiasmo que nos encontramos numa situação de protectorado da qual foram os promotores , que significa “Defesa Nacional”?

Defesa de quem? Contra que ameaça ou ameaças?

O estado a que foi conduzido o país ,com a cumplicidade activa e determinante da maioria na Assembleia da República, do Governo por ela sustentado e do Presidente da República perito em fintar quer as obrigações decorrentes do seu supremo magistério quer as suas responsabilidades como comandante supremo das Forças Armadas, é o de território arrasado e de  população espoliada e, em grande parte, refugiada noutros países.

De facto o país foi invadido e invadido vai continuar.

As elites políticas, financeiras,  industriais e mercadejantes são as grandes beneficiárias e, como sempre, colaboradoras com o inimigo.

Ou seja, o inimigo, de facto,  está cá dentro; o que afecta de raiz a ideia de unidade nacional proclamada por Salazar e Caetano e agora retomada por Passos Coelho e Cavaco Silva. Uma guerra interna, para lhe não chamar guerra civil, a única guerra que temos que temer e que devemos vencer, esmaga o povo português.

Afinal a grande, e praticamente única, ameaça a que devíamos atender,  foi concretizada sem que as Forças Armadas fossem chamadas a intervir em defesa daquilo a que se costuma chamar, também por redução ao absurdo, interesses nacionais.

E, de facto, as Forças Armadas nada podiam contra tão insidiosa, e mesmo subtil, ameaça  mas ao mesmo tempo tão concreta quando pôde ser apreendida no seu potencial destruidor.

II

Desenvolvendo o triplo paradoxo, as Forças Armadas com o dever constitucional de defender militarmente a República encontram-se privadas de enquadramento estratégico a não ser aquele que lhes é imposto do exterior da República que é suposto defenderem militarmente.

De facto a indigna e costumeira subordinação protectoral da burguesia  portuguesa, encarregou-se de, após o afeiçoamento do 25 de Abril aos seus interesses, ou seja aos interesses que a comandam,reiterar a pertença à NATO que Salazar, mula velha, alcançou como  mais duradouro regime fascista europeu para participar na defesa das democracias europeias.

Portugal não  tem um conceito estratégico e assim, também não existe um conceito estratégico de defesa nacional. Nem é necessário porque ele é definido pela NATO, ou seja pel potência tutelar do ocidente, os EUA do pacifista Obama que passou a usar aviões não tripulados para assassinar suspeitos e chacinar populações em redor.

Portanto a defesa da República define-se fora da República o que não deixa de ser um descanso.

Mas sendo verdade que o país precisa de um conceito estratégico, como aliás sublinha a única entidade credenciada para tal no seio da elite nacional, Adriano Moreira, que aponta a necessidade de abrir janelas para o protectorado poder respirar melhor e o pessoal pensar que tem soberania, olhando o mar e diplomaciando e negociando na CPLP, torna-se prioritário primeiro definir a referência suprema para esse conceito estratégico.

Pode estar subordinado à NATO  como, aliás, o Tratado de Lisboa da UE reforça para esta mesma?

Pode estar subordinado à estratégia global, que destrói o país e empobrece o povo como desígnio das elites , de transferência dos rendimentos do trabalho para a especulação financeira através da dívida soberana ou de outros processos que se não estão inventados vão decerto sê-lo? Ou seja, do trabalho para os multimilionários cogumelos?

No mar ou na UE ou na CPLP, pode estar subordinado à arquitectura do império?

Pode estar subordinado,já que de FA’s se trata,à estratégia da guerra infinita, como “desígnio manifesto”?

Pode!

Os interesses do povo português são compatíveis com tal conceito estratégico? Não!

A defesa dos interesses da soberania popular é, por definição e por constatação histórica e prática actual, antagónica a tal conceito.

III

É pois necessário que o conceito estratégico do país se defina liberto dos constrangimentos letais a que tem estado e continuará subordinado, na situação imposta pelas regras do capital financeiro global.

Daí que as Forças Armadas como instrumento operacional directo dos agentes de subordinação e protectorado que nos amarram e destroem enquanto povo soberano, sejam, elas próprias, não só o corpo parasitário que a burguesia sustenta com os meios roubados a quem trabalha para sua própria defesa, atribuindo-lhe a missão de garante último das suas políticas deletérias, mas também como um trunfo, ainda que pífio e irrisório,  para a sua relação de dependência.

O papel que seria suposto desempenharem, não passa de uma farsa com roupagens de gala em ópera bufa.

Ligadas tradicionalmente às classes dominantes através de uma hierarquia e de uma organização que serviram de modelo à organização da exploração capitalista, as forças armadas nacionais  foram sempre os corpos de imposição da vontade do capital.

A hierarquia militar, que se sustenta a si  própria e assegura a sua reprodução num processo de feição aristocrática tradicionalmente imbricado com os poderes decorrentes do domínio económico,conduz os conscritos ou voluntários para executarem as acções necessárias à prossecução das políticas externas e, se necessário, a repressão providencial em apoio das forças de segurança interna.

As nossas Forças Armadas, e estamos em pleno paradoxo da sua natureza, ficaram indelevelmente ligadas ao 25 de Abril.

O MFA (Movimento das Forças Armadas) como força dominante durante o processo de libertação do país e de viabilização interna da aceitação da irreversível  independência das colónias, deu fama a quem não a merecia: as Forças Armadas não se desviaram da sua vocação e função histórica: o 25 de Abril teve que ser executado a partir de um golpe contra as FA’s enquanto corpo hierarquisado nessa base disciplinado. De tal forma que ninguém as vê comemorar o 25 de Abril.

 

IV

Portanto, em tempo de OE para 2014, temos que nos interrogar se os 2.138,7 milhões de euros, mais 6,8%, 135 milhões de euros, que em 2013, que lhes vão ser atribuídos, contribuirão para a dignidade e felicidade do povo português.

Lá virá a conversa, à direita e alguma esquerda patriótica,  que a “pátria nos contempla”

Com o inimigo cá dentro, ao serviço do inimigo chamado aliado lá fora,as FA’s para além do seu carácter parasitário, delapidando meios e recursos, hoje ainda mais do que nunca necessários para aplicações tão básicas e fundamentais como a saúde e a educação, e para uma Protecção Civil – essa sim absolutamente necessitada de recursos para responder à defesa segurança de pessoas e bens – onde todo o investimento tem retorno na economia e no bem estar das pessoas, devem ser abordadas do ponto de vista de prestação de serviços mínimos.

52 milhões de euros atribuídos para missões no estrangeiro, em tempo de austeridade brutal para a população! No Afeganistão e no Kosovo, ao serviço da política expansionista do império norte-americano e ajudando a justificar a construção da maior base dos EUA na Europa para controlo da região balcânica

No entanto, as FA’s enquanto corpo constituído e secular, inscrito no imaginário e na ideologia dominante e aceite em geral como  garante da defesa da República, são constituídas por homens e agora também por mulheres que nelas ingressaram num processo indiscutivelmente  sancionado pela opinião pública geral que vê neles os seus filhos mais dedicados.

Contratualizaram condições, criaram uma quase-mística e construiram uma simbologia de serviço, que legitimamente  reivindicam como base de direitos inalienáveis como os de qualquer cidadão. Que de facto têm.

O Orçamento de Defesa deve, pois, em primeiro lugar assegurar o cumprimento dos compromissos assumidos pelo Estado com esses seus servidores, para o bem e para o mal,em detrimento do investimento em material e estruturas que estão ao serviço dos crimes de guerra que caracterizam hoje a actuação dos exércitos das potências, e o nosso está adstrito, constrangido pela NATO à guerra infinita do imperialismo.

A redução de 48,5% das verbas para a Lei de Programação Militar são uma imposição da situação criada  pela aceitação do protectorado. Não uma política decorrente de um conceito estratégico que coloque imperativamente em primeiro lugar os interesses da soberania popular e do bem-estar da população, numa política de dissolução dos blocos miliatres, de paz e cooperação com os povos, como aliás aponta a Constituição da República, a mesma que atribui às FA’s a missão tornada impossível de defesa militar da República.

Mário Tomé, capitão de Abril e membro dos Corpos Sociais da ATTAC Portugal

Voltar