Da Paz e das Relações Internacionais: algo parece estar a mudar…

14-06-2010 13:58

A propósito da reunião do Conselho de Segurança da ONU, da sua resolução com sanções contra o Irão e da oposição do  Brasil e da Turquia

Assisti, em directo, nas cadeias internacionais de informação televisiva, a um acontecimento que interpreto, nas relações internacionais e no combate pela paz, como uma mudança  relevante e positiva: na reunião do Conselho de Segurança da ONU de ontem, os governos de dois países e duas economias emergentes (Brasil e Turquia) votaram contra a resolução proposta e aprovada pela maioria (também com a abstenção do Líbano), com os EUA à cabeça, para imposição de novas sanções contra o Irão. Que fique também para a história: a China da via capitalista para o socialismo votou confortavelmente esta resolução ao lado das outras potências do pós-guerra do século XX (EUA, Grã-Bretanha, França e Rússia), que em conjunto detêm um anacrónico poder de veto neste órgão da ONU determinante para a paz mundial.

Ou seja: em vez de estes Estados e a ONU aproveitarem e impulsionarem a Declaração de Teerão de 17 de Maio, subscrita pelo Irão, pelo Brasil e pela Turquia sobre o tratamento do urânio iraniano e que abria caminho a uma negociação internacional para a neutralização da sua utilização para fins militares pelo Irão, preferiram dar um passo em frente em medidas e numa retórica agressivas que são também discriminatórias. Porque não adoptam idênticas resoluções sancionatórias em relação a Estados, como o Israel ou o Paquistão, que toda a gente sabe possuírem já a bomba nuclear e recusam subscrever o Tratado de Não Proliferação Nuclear, ao contrário do Irão, que é seu signatário? Porque são aliados dos EUA?

É aliás significativo que a Administração Obama apresentasse no Conselho de Segurança da ONU, logo no dia seguinte a esta iniciativa do Brasil e da Turquia e à subscrição do acordo, o projecto de resolução agora votado, condenatório do Irão, assim procurando desfazer o impulso positivo do acordo de Teerão e a via aí aberta para o diálogo num nível mais avançado.

Acordo de Teerão: pela mão de novos  actores políticos, novas oportunidades para a paz

Mas o que tem de facto um significado positivo e novo nas relações internacionais, que acentua o carácter caduco do equilíbrio de forças de um Conselho de Segurança cristalizado numa relação de forças ultrapassada, é a posição clara da Turquia e do Brasil, em coerência e continuidade com a independência que crescentemente vêm manifestando relativamente à política externa do seu aliado tradicional (os EUA) e apostando cada vez mais numa afirmação política própria e numa diplomacia de diálogo e negociação em diferentes direcções. Lembramos a iniciativa turca para a normalização das relações com a Arménia ou, agora, a sua firme condenação do ataque israelita e a sua solidariedade com o povo cercado de Gaza e a causa palestiniana.

No seu discurso no 3º Fórum Mundial das Civilizações, no passado dia 28 de Maio, no Rio de Janeiro, o Presidente Lula, a propósito do Acordo de Teerão, sublinhou que “o Brasil aposta no entendimento que faz calar as armas. Investe na esperança, que supera o medo. Posições inflexíveis só ajudam a confrontação e afastam a possibilidade de soluções de paz”.

Estas duas potências emergentes, cuja afirmação política internacional crescente é inseparável também do aumento do seu poderio económico, comprovam assim que existem novos actores políticos com que é preciso contar na construção dos equilíbrios internacionais e da paz. O que pode ser um facto positivo num mundo multipolar cheio de incertezas e de ameaças à paz.

 A resolução agora aprovada por um Conselho de Segurança com uma composição e um funcionamento anacrónicos, que já não reflectem a actual relação de forças mundial, prisioneiro ainda da realidade do pós-guerra em 1945, é palha lançada à fogueira que pode alimentar novos desastres para a paz como o afegão e o iraquiano, em que os EUA, com potências ocidentais à arreata, mergulharam o mundo. Só que este, a verificar-se, seria de proporções mais dramáticas.

É útil recordar que as 5 potências com direito de veto no Conselho de Segurança (EUA, Rússia, China, Grã-Bretanha e França) são também os países com maiores orçamentos militares e estão igualmente na linha da frente, juntamente com a Alemanha, no fabrico e exportação de armamento militar para todo o mundo.

As contradições e os limites da Administração Obama

Importa lembrar que esta mesma Administração Obama que optou por não explorar as virtualidades negociais da iniciativa turca e brasileira junto do Irão, também no recente ataque criminoso de Israel contra a flotilha transportando solidariedade humanitária para Gaza (“terrorismo de Estado”, como justamente o classificou o Primeiro-Ministro turco Erdogan), não apoiou a recente exigência do Conselho dos Direitos Humanos da ONU e de vários países para um inquérito internacional independente e isento sobre aquele ataque. Aceitou antes o inquérito que o próprio agressor decidiu fazer a si próprio, embora adoçando essa posição com exigências de esclarecimento do sucedido e da insustentabilidade da situação de Gaza, e que prossegue uma política de reforço da intervenção militar no atoleiro afegão e o apoio a um regime corrupto naquele país.

Não se ignora aqui o carácter ditatorial do regime iraniano e a necessidade do reforço da condenação internacional dos seus atropelos aos direitos humanos e da solidariedade aos que se batem pela democratização do regime.

Também não esquecemos a positiva mudança no clima internacional, desde logo o corte com o unilateralismo de Bush, e o esforço de reformas internas que caracteriza a acção de Barak Obama, por comparação com os seus antecessores de má memória. O seu maior distanciamento relativamente à agressiva e autoritária política do governo de Israel. A assinatura de um novo tratado com a Rússia para a redução do armamento nuclear. O seu proclamado objectivo de um mundo sem armas nucleares. O seu contributo para o relativo sucesso da Conferência dos países signatários do Tratado de Não-Proliferação das Armas Nucleares, que terminou com a proposta de realização duma conferência para o desarmamento nuclear do Médio Oriente e com a novidade do apelo expresso ao Estado de Israel para que subscrevesse o Tratado (recordamos que o Irão é subscritor deste Tratado, enquanto Israel, a Índia, o Paquistão e a Coreia do Norte, potências nucleares de facto, embora não assumidas, não o subscreveram).

Ou seja, Obama continua a demonstrar, nos avanços e recuos externos e internos da sua política, que a sua condição de presidente duma potência imperial e o complexo militar-industrial-financeiro dominante nos EUA são fortemente condicionantes da sua política e da execução das boas intenções que proclamou nos seus discursos.

A relativa passividade e impotência do comportamento dos EUA face à ostensiva agressividade do governo israelita e o seu fechamento à oportunidade aberta pelo acordo de Teerão, são sinais contraditórios com a importante declaração de Obama no Cairo, em Junho do ano passado (ver aqui), em que procurou impulsionar a pacificação das relações dos Estados ocidentais com o mundo islâmico.

Como a experiência internacional e as desastrosas consequências da política imperial dos EUA e dos seus aliados têm demonstrado, a construção da paz exige cada vez mais o recurso à diplomacia e à via do diálogo bilateral e multilateral, o respeito pela autodeterminação dos povos e que se silenciem os canhões. Exige que a ONU e o seu Conselho de Segurança sejam reformados, de modo a dar também voz e responsabilidade aos novos actores políticos emergentes e a substituir um directório político ultrapassado pela realidade, para que a ONU possa cumprir com a eficácia que hoje não tem o seu papel insubstituível e necessário na governação mundial. E para que a concertação política e os poderes à escala mundial não sejam crescentemente usurpados por um grupo de países (o G-20)

A União Europeia: um anão político e um grande mercado

O ataque de Israel à flotilha com solidariedade humanitária para Gaza e, agora, a posição tomada pelos países europeus no Conselho de Segurança sobre as sanções contra o Irão, evidenciam de novo a inexistência prática da União Europeia como actor político global, a sua irrelevância e impotência e o seu seguidismo face ao “amigo americano”.

Afinal, por detrás disso estão as mesmas razões por que a crise económica está a bater tão forte na UE e no euro e a ser regionalmente aproveitada pelos poderes dominantes para destruir os adquiridos sociais europeus em nome da “competitividade” global e fazendo regredir a Europa à selva de um poder político capturado e ao serviço da ditadura dos mercados financeiros, em que impera a lei do mais forte e se quebram solidariedades.

Esta União Europeia, em cuja apagada Comissão pontifica um burocrata português às ordens do directório das grandes potências e que foi o mordomo às ordens na Cimeira dos Açores de triste memória (fugido, recordam-se, do Governo de Portugal, quando as coisas aqueceram e que nunca percebemos por que razão o seu novo emprego foi proclamado motivo de orgulho nacional ou benéfico para o país) enfrenta uma grave encruzilhada:

Ou a crise a estilhaça ou no mínimo a enfraquece ainda mais, com o renascimento dos nacionalismos, com a persistência na orientação monetarista e neoliberal actual, comandada pelos grandes interesses económicos e em que o naufrágio da UE começa por sacrificar os mais frágeis;

Ou encontra o caminho para sustentar a sua união monetária num reforço da sua coesão social e política, com uma soberania partilhada em que todos contam, e na afirmação distintiva de um modelo de Estado social renovado e avançado. Para que assim e então a UE possa ser no mundo mais do que um grande mercado e passe a constituir um actor político relevante e global em favor da paz e da sustentabilidade do planeta.

As respostas têm que ser encontradas no movimento social e à esquerda, ou…

Mas isto é outra longa história que desafia o papel, o engenho e o sucesso do movimento social, dos sindicatos e das esquerdas europeias na produção de alternativas credíveis, socialmente mobilizadoras e sustentadas na convergência da acção colectiva. Ou o preço é o renascimento e a tomada do poder, como já está a suceder, agora à boleia dos nacionalismos e da xenofobia, dos mesmos que teorizaram o neoliberalismo e a racionalidade dos mercados que estão na origem da crise.

Mas hoje, afinal, e para concluir esta longa oração, vale sobretudo a pena celebrar o significado positivo da manifestação de independência em favor da paz e do diálogo internacional que representa o voto contra das duas potências emergentes – o Brasil e a Turquia. Um pequeno sinal de que algo de novo se está a formar nas relações e equilíbrios internacionais, que pode também animar todos os que não desistem de erguer em toda a parte um movimento de cidadania pela paz, pelos direitos humanos, pela igualdade e pela solidariedade.

E em nome de tudo isso, porque não celebrar aqui esse espantoso hino pela pela paz e pela igualdade que é Imagine, de John Lennon?

Henrique Sousa, da Direcção da ATTAC

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