Mais dívida e mais tempo? Não, obrigado – José Castro Caldas

15-04-2012 22:32

 

 

Intervenção de José Castro Caldas na conferência Sair da Armadilha, promovida pela ATTAC no final de Março*

Em setembro de 2013, 9,7 mil milhões de euros em títulos de dívida pública atingem a sua maturidade e terão de ser pagos. O atual empréstimo da Troika já não cobrirá esse montante. Isso significa que, para os poder pagar, o Estado português terá de emitir títulos de médio e longo prazo antes desta data e encontrar credores dispostos a adquiri-los por uma taxa de retorno razoável. Como diz o Ministro das Finanças, Portugal terá de ter «regressado aos mercados» antes de setembro de 2013. Falta um ano e meio.

Acontece, porém, que os regulamentos do FMI determinam que esta instituição só possa libertar fundos se existirem garantias de financiamento do país intervencionado pelo menos durante um ano. Antes de setembro de 2012, o FMI vai ter de verificar se estas garantias existem ou não. Se o calendário for cumprido, esta avaliação deverá ser feita na 4.ª revisão do Programa da Troika, em junho de 2012. Faltam três meses.

Se a Troika concluir, em junho próximo, que não há garantias de «regresso ao mercado» antes de setembro de 2012, o que é muito provável, o FMI condicionará a libertação das últimas tranches do empréstimo à negociação de um segundo programa – o tal que Krugman, na sua visita a Portugal, dizia que não deveríamos aceitar por nada deste mundo.

Dado que o «regresso aos mercados» antes de 2013, garantido pelo Ministro das Finanças, mas com necessidade de ser demonstrado até junho, é mais do que muito improvável, a questão que se coloca de imediato ao governo, a todos os partidos políticos e a cada um de nós é a de aceitar ou rejeitar um segundo programa que prolongue a intervenção da Troika pelo menos até 2018.

Para decidir devemos ter em consideração vários aspetos.

Em primeiro lugar, não devemos perder de vista que os programas da Troika não reduzem a dívida do Estado português. Os empréstimos da Troika são dívida que serve para pagar dívida e capitalizar bancos. Limitam-se a substituir dívida a bancos e outros investidores estrangeiros privados por dívida a credores oficiais (FMI, Fundos da UE e BCE) e instituições financeiras nacionais – dívida reestruturavel, por dívida muito mais difícil de reestruturar.

No final de 2012, apenas 37% da dívida será restaurável (incluindo bancos portugueses). No caso de um novo programa, este número tenderia rapidamente para zero: praticamente toda a dívida estaria nas mãos de credores oficiais.

Em segundo lugar, um novo programa da Troika não iria reforçar a capacidade do Estado português para fazer face à dívida. Pelo contrário, as medidas de reforço da austeridade e de «ajustamento estrutural» que acompanhariam este programa iriam prolongar e aprofundar a recessão, reduzindo as receitas fiscais e a capacidade de servir a dívida.

Em terceiro lugar, mais seis anos de austeridade reduziriam a escombros a capacidade de provisão pública na Saúde, na Educação, nos Transportes e Comunicações, na Proteção Social.

Em quarto lugar, seis anos a mais de «ajustamento estrutural» erradicariam o que resta de decência no enquadramento jurídico das relações de trabalho. O aumento do desemprego empurraria os salários para níveis asiáticos e o melhor de uma geração para a emigração.

Em quinto lugar, mais seis anos de austeridade e «ajustamento estrutural» tornariam patente a crise política cujos sinais já pressentimos. Esta é, como sabemos, uma crise cuja saída é politicamente indeterminada.

No final de um novo programa da Troika encontrar-se-ia a insolvência. Não a insolvência como se perfila já hoje, mas a insolvência num pais destroçado.

Parece, portanto, que o novo programa da Troika que se perfila, prolongando a austeridade e o «ajustamento estrutural» para 2018, é inimaginável, inaceitável.

O que pode e deve ser feito em alternativa?

Não esperar pelo incumprimento em 2018 com o país destroçado. Iniciar a reestruturação da dívida já. Isso mesmo pode eventualmente vir a ser exigido pelo FMI em junho, como aconteceu na Grécia.

Mas a reestruturação de que precisamos não a que é o FMI estaria disposto a liderar – uma reestruturação que permite aos credores cobrar o máximo possível. Não precisamos de uma reestruturação à Grega que deixe tudo pior do que antes. Necessitamos de uma reestruturação liderada pelo Estado português que não inclua apenas a parte subordinada (isto é, a que não é detida pelos credores oficiais).

Precisamos desta restruturação, ou de uma (muito improvável) viragem completa nas políticas europeias, que viabilize um programa de investimento capaz de criar emprego e de inverter a tendência de declínio na periferia europeia e, por extensão, no conjunto da União.

Sabemos bem que não temos um governo capaz de enfrentar a crise com determinação. Pelo contrário, o que temos é um governo que quer aproveitar a oportunidade da crise para realizar um programa político de erradicação do estado social e do direito do trabalho. Um programa em que os portugueses nunca votariam e que só pode ser realizado num estado de exceção não declarado como o que vivemos. Mas isso não nos pode impedir de pensar, de dizer e mesmo de lutar por aquilo que no imediato surge como lógico, justo e necessário: a rejeição de um novo programa da Troika, uma reestruturação da dívida liderada pelo Estado português.

Ao início do processo de reestruturação da dívida não se seguiria o fim dos nossos problemas. Pelo contrário. Pelo menos a curto prazo, teríamos de enfrentar coletivamente grandes dificuldades. No entanto, a porta da democracia continuaria aberta. Assim como o caminho para uma sociedade menos desigual, com menos sofrimento pessoal individualmente sofrido, com dignidade e alguma esperança.

Em todo o caso, e na medida em que outros na Europa nos acompanhassem, ou se nos adiantassem, contribuiríamos desta forma para transformar o próprio projeto europeu, refundando-o em bases verdadeiramente democráticas.

*Publicado originalmente aqui: https://auditoriacidada.info/

José Castro Caldas, Economista, Professor na Universidade de Coimbra

Voltar