A Europa contra a Democracia - Henrique Sousa

07-11-2011 00:35

A União Europeia foi originariamente criada em nome da liberdade e da democracia. Sim, nós sabemos, também foi porque os Estados Unidos e os seus aliados europeus viam então na construção deste bloco económico e político uma forma de equilibrar forças com o bloco soviético.

De tratado em tratado, e passadas a euforia e as ilusões suscitadas pela queda do muro de Berlim e pela implosão da URSS e dos outros países europeus do "socialismo real" (lembremo-nos das teses do "fim da História" fundadas na ideia da consagração que seria definitiva das democracias liberais como forma política do capitalismo triunfante), foi-se perdendo a retórica da democracia e do modelo social europeu, como características distintivas do novo sujeito político, substituídos pela submissão aos mercados financeiros e aos ditames da globalização neoliberal em nome da competitividade. Foi assim que se foi enterrando qualquer pretensão de legitimação democrática do processo de construção política europeia, à medida que as elites iluminadas o concebiam como causa demasiado complexa para ser deixada às aventuras e incertezas da democracia. Assim foram sendo afastados os referendos, essa praga perturbadora, ou feitas pressões inauditas e ilegítimas para que os cidadãos votassem simplesmente o que estava já decidido pelos poderosos, atingindo-se a quase perfeição na fuga ao debate e escrutínio democráticos com o Tratado de Lisboa que tanto comoveu Sócrates e demais bloco central de interesses como feito histórico e pedra angular na construção da nova Roma. Chegou a crise financeira e económica. Com ela estalou o verniz da diplomacia e a narrativa europeísta dos poderosos, enquanto a nudez crua de um deplorável casal (Merkel & Sarkozy) vem destruindo o manto diáfano da fantasia e o próprio projecto de construção europeia, agora à mercê do directório dos grandes interesses e das grandes potências europeias. Alguns politólogos de serviço olham para isto como sendo apenas a vitória do "realismo" na política. Só que este naufrágio que vivemos é pago com a vida e o sofrimento de muitos milhões de europeus, hoje gregos e portugueses, amanhã também espanhóis, italianos e todos os outros.

A decisão do primeiro-ministro grego em realizar um referendo no seu país, entalado entre a exigência da última cimeira europeia de mais um programa de austeridade e de um governo permanente da troika em Atenas que converteria o governo grego numa irrelevância, como condição de um perdão parcial da dívida (compensado com a recapitalização dos bancos, porque só as pessoas podem perder, o sistema financeiro não), e a rejeição social pela maioria dos gregos desta política, foi suficiente para fazer estalar todo o verniz e trazer à superfície a pulsão autoritária essencial do directório de interesses que está a destruir a União Europeia e a afundar a já reduzida credibilidade das suas instituições. Discursos ameaçadores e ofensivos para o Estado e o povo gregos, acompanhados de avisos insultuosos para que outros (como nós) não lhe sigam os passos. Recusa de transferência da prestação de "ajuda" que deveria ser entregue à Grécia por estes dias. Exigência de conversão do referendo para auscultar a vontade do povo grego de aceitar ou recusar o presente envenenado da última cimeira europeia em referendo sobre a continuidade ou saída da Grécia do euro. Chantagens várias quanto à saída da Grécia da zona euro e da própria União Europeia. Fartar, vilanagem. Valeu tudo para produzir o resultado desejado pelos "mercados", pelo G20 e pelo casal Merkozy, de vergar o povo grego, anular o perigoso referendo à vontade popular e abrir caminho a que um governo de bloco central de interesses assuma o papel de capataz das grandes potências na Grécia. Tudo com a cumplicidade servil e masoquista dos mais pequenos que não desistem de ser "bons alunos", como o governo português (e, sejamos justos, o PS), os quais não se cansam de proclamar cobardemente que somos "diferentes" dos gregos. Sempre em nome do velho e oportunista princípio de que enquanto o pau vai e vem folgam as costas e que algo podemos lucrar com a desgraça dos outros. Até nos chegar a vez. Como já lembrou Brecht num célebre e conhecido poema.

Não foram os referendos que puseram em risco o barco da União Europeia. Nem sequer é a crise económica e financeira que a destrói. É antes a resposta e as escolhas do directório das grandes potências e dos grandes interesses, que tomaram o partido dos mercados financeiros e da sua narrativa ultraliberal contra os seus próprios povos, em vez de usarem o poder e a política para os submeterem e controlarem. E que por isso estão a fazer naufragar o projecto europeu, a fazer renascer os demónios nacionalistas e xenófobos e a pôr em causa a possibilidade de construção duradoura nesta região de um sujeito político global e diferente com padrões sociais e políticos democráticos e com uma paz duradoura. Num continente que, não há muito tempo, foi o centro das duas guerras mundiais mais mortíferas da história humana e em que os povos passaram os últimos séculos a agredir-se e matar-se mutuamente.

São tempos em que a nossa responsabilidade cidadã é convocada como raramente foi nas nossas vidas. Para que não se cumpra a profecia de Marx de que a História se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. E para que o significado grego de democracia, como "governo dos muitos", seja recuperado e sobreviva à subversão em curso de governo das oligarquias.

Henrique Sousa, membro da direcção da ATTAC Portugal

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